A Cidade das Aves

Foram quatro-longas noites-quatro de fantasia e sátira política sem aveia na língua. Aristófanes trasladado à cena no Parque D.Carlos I, em Caldas da Rainha. As Aves (414 c. C.) é a comédia mais fantástica do autor, uma obra cujo escapismo terá sido a resposta do génio teatral ao declínio da civilização ateniense. Nem vale a pena estar a sublinhar o potencial de actualidade no texto… aqui aportado via a peça de Bernard Chartreux:A Cidade dos Pássaros, ‘situada’ na democracia liberal burguesa dos dias de hoje.

Com tesão e tomates, palavras e palavrões bem medidos, zero de concessões a não ser ao compromisso de comunicar a mensagem milenar e sobretudo actualizar uma peca que é por si só um monumento e um mito da Cultura, o Teatro da Rainha criou condições para uma pequena-grande epifania cidadã.

Garras bem fincadas mas questões do momento (muros ímpios, manipulação populista, aceitação das hierarquias mais estúpidas, subjugação voluntária aos fascismos e que tais), e deleitando-se no cubismo conceptual das piruetas literárias do mais agridoce dos comediógrafos, encenação (e adaptação de Fernando Mora Ramos) e elenco entregaram-se cheios de ventura – gáudio ornitológico – a um modelo dinâmico da consciência crítica. Com o público convocado para a situação empática que o ambiente natural naturalmente propicia, não apenas a estrutura do pensamento grego como suas insignes ruínas foram habilmente desenterradas.

O bonito do mundo dos homens é isto, (saber) ridicularizar-se numa metaforologia paródica, alada, expandida. Como sempre aconteceu na fábula mais exigente. De resto, a multidimensionalidade do texto e as máscaras de Filipe Feijão levaram as centenas de espectadores, presas de sorrisos e gargalhadas (de boca cheia de gorgulho), a compreender melhor as asas que nos faltam enquanto espécie. A Rainha gosta deste Teatro. Palmas.

E lá está, é sempre muito prazenteiro este aparato do avesso, quando à saída (o cair do pano invisível) os pássaros tiram as máscaras e lhes ficamos a ver a real estatura do bicho homem. O corvo lá esteve a fazer o seu habitual papel. Ser mais um bico no bando efémero que foi este belo público, comunidade de mil rostos que, no regresso aos ninhos, viria a pintassilgar os caminhos de terra com chilreios de crianças e até amanhãs se Zeus quiser.

Aristófanes (n. 450 a. C) é o mais representativo autor da Comédia Grega. Prolífico autor de – e vejam-me estes títulos – Vespas(422), Paz(421) ou Sapos(405), apadrinhou um noite de arte especialmente pública. O regresso do burlesco ao coro quotidiano da cidade é coisa que aqui fez sentir todo o sentido. Foram quatro-longas noites-quatro de fantasia e sátira política sem aveia na língua.

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