O momento performático por excelência é a caixa negra [nome da exposição] à saída/entrada, um apelo ao íntimo enunciar/anunciar da co-presença do/a espectador/a, expondo-se por um momento ao seu próprio gesto de inclusão.
Não imagino melhor – ou mais focado – modo de dizer a pandemia, no seu delicado jogo de sobrevivência em que o íntimo e o absoluto, o privado e o público são expostos enquanto relações. Toda esta exposição é em suma luz que entra e é guardada. Curada. A praça lá fora é o público, a pequena ânfora cá dentro o espaço dentro do espaço.
Está naturalmente de parabéns a mentora desta iniciativa radicalmente honesta e ao mesmo tempo assertiva do lugar da arte nas nossas cidades: a performer, investigadora e professora Teresa Luzio, que aqui expõe em mão de igualdade com discentes e alumni da ESAD.CR: Ana Raquel Pessoa, Filipa Jesus, Inês Garcias, Luna Gil, Matilde Gazeau Frade, Sofia Maciel.
A curadora-curandeira é a Madalena Folgado, que a imagem em baixo capta na essência da sua relação com o espaço; guardiã do que não é objecto nem objectificável, mas que se manifesta – com ela diz, «na relação entre os objectos – a diferentes escalas, enquanto saltos de Consciência. Obra-cidade-Cosmos.» É dela a proposta da caixa negra – o cubo negro “Augúrio (do) Nada” – que convida ao silêncio no átrio junto às escadas, e o texto que milagrosamente capta o sentido deste esforço conjunto em que mulheres – cada uma em seus processos – se associam à deusa grega Pandemia para a abraçar o trauma com um abraço de luz.
Para que conste, eis o texto (da autoria da Madalena) que enquadra esta quase secreta exposição. Caixa Negra está patente até 31 de Julho na Galeria de Exposições do Espaço Turismo das Caldas da Rainha (ao cimo da Praça da Fruta).
«Há voos que são quedas. Verdadeiros golpes de asa capazes de estilhaçar mundos para os doar à Terra.
Sete artistas caíram em si. Caíram em nós; ataram-se sem se emaranhar. Teceram relações até ao infinito do seu possível – o Agora – e deram-nos a ver que as constelações estão e-ternamente em aberto; não conhecem o espaço como confinamento. Trocaram objetos entre si, cuja imensidão íntima [Gaston Bachelard] lhes permitiu confiar a sua queda ao Outro. Desenharam inesperadas órbitas até chegar ao centro da sua existência. Descobriram que também o seu sol não exige o retorno da Terra à qual se doam. Caíram no próprio Amor, que é o Amor-próprio.
Oferecem-nos húmus e coordenadas para nos perdermos; o cromossoma do acolher, sem predeterminação biológica. Só por acaso as sete artistas são sete (7) mulheres – 7+1 = 8. Incluo-me neste infinito vertical (8), que é para muitos de nós a redescoberta do tempo; ou a própria atemporalidade – O tempo suspenso, vertical, tão terrível quanto fértil, que os artistas tão bem conhecem, e que a Pandemia deu a conhecer a um maior número de pessoas. Incluo-me, também, porque esta não é uma mostra exclusiva, é uma manifestação do Comum, em aberto; um olhar renovado sobre os processos horizontais de cocriação artística.
A exposição Caixa Negra marca a reabertura da Galeria de Exposições do Espaço Turismo das Caldas da Rainha, após o período de confinamento devido à Pandemia. Simultaneamente guarda e expõe os registos deste e de outros tempos suspensos, onde o acaso importa – onde o acaso é por-ventura a nova porta, para o encontro com o Outro que nos acontece. É por isso tempo de Aprender a Ser, pilar da educação da UNESCO, nesta cidade assinalada como criativa pela mesma Organização Mundial.
Entre as artistas há – por acaso – uma professora. Aprender a Ser é antes de mais aprender a cair. O caos do acaso combinado com a ordem alfabética dos nomes das artistas fez com que o seu nome fosse empurrado para o final da lista vertical em cartaz. Caiu primeiro que as alunas, para poder ver as suas quedas; a professora tem a vertigem do ensino horizontal. O que nos lembra o poema Pórtico do poeta Daniel Faria, cuja existência foi tão fugaz como luminosa: Com os meus amigos aprendi que o que dói às aves / Não é serem atingidas, mas que, / Uma vez atingidas / O caçador não repare na sua queda.
As artistas pedem-nos silenciosamente que como as estrelas cadentes – meteoros que fugazmente rasgam os céus – lhes confiemos um desejo neste tempo de exposição íntima: Um desejo antigo de criança, agora renovado; um bom augúrio, já que se vêem impedidas de inaugurar. Este é, também, um convite para que se deixem contaminar pela Pandemia que a Caixa guarda, não sendo esta uma caixa de Pandora.
A origem e significado do termo Pandemia no grego antigo, diferentemente do atual uso cultural, foi em tempos simplesmente a todos pertencer; ou, ser comum a todos, epíteto de uma versão mais terrena de Afrodite, a deusa grega do Amor e da Beleza. Saibamos guardar desta exposição o seu original sentido. Transformemos, como as artistas, as perdas em recompensas; as dolorosas ausências em vazio criativo, útero comum do novo dia. Faça-mos deste modo bom uso cultural do termo Pandemia, não fosse o ato criativo, como aqui tão bem se expõe, um ato de comunhão.
O Amor e a Beleza sempre estiveram connosco; os artistas sabem-no bem. No princípio e no fim tudo em Caixa. Negra, Outrora, porque a Luz entra Agora em cada reparar. E, em cada reparar, um recomeçar.»